Crítica | Homem-Aranha no Aranhaverso
Quando assisto um filme baseado em quadrinhos que considero reunir todas as qualidades que fazem uma boa adaptação desta mídia, costumo dizer que a experiência “é como se estivesse lendo um gibi “. E no caso de Homem-Aranha no Aranhaverso, isso toma uma proporção absurda, quase que literal. Dentre todas as adaptações de super-heróis, muito em parte por se tratar de uma animação, esta é a que mais consegue brincar e se aproveitar da linguagem dos quadrinhos no áudio visual.
É inevitável o sentimento de estar assistindo a algo novo e criativo, que mistura diversos estilos de animação sem pudor, com peças individuais carregadas de originalidade e identidade própria, que funcionam perfeitamente em uma tapeçaria maior. O estilo não é apenas graficamente bonito, mas também ágil e dinâmico, o que contribui muito para a narrativa.
E convenhamos, esse é o melhor filme do Homem-Aranha desde o Homem-Aranha 2 de Sam Raimi, do já longínquo ano de 2004. E é curioso como 2018 (o filme estreou nos EUA em dezembro) foi um ano bem interessante para o cabeça-de-teia, não apenas com esse longa, mas também com o aclamado game da Insomniac, mostrando o potencial enorme do personagem quando entregue nas mãos certas. Mais do que isso, esses dois materiais expuseram a fragilidade do Homem-Aranha do Universo Cinematográfico Marvel, fruto da parceria entre Marvel Studios e Sony, que ainda está longe de fazer jus ao legado do personagem. Mas isso é assunto para um outro dia.
E não se deixe enganar. O filme é de Miles Morales. É um filme sobre legado, passando a velha mensagem de que, por baixo daquela máscara, qualquer um pode ser o Homem-Aranha. Não é a toa que o traje do personagem criado por Stan Lee e Steve Ditko em 1962 não deixa parte alguma de pele visível.
Miles Morales é um personagem que nasceu completamente desse conceito quando surgiu nos quadrinhos em 2011, e que aqui se expande para uma mídia de maior alcance cultural. O trabalho de adaptação em relação ao personagem nesse sentido é perfeito. A amabilidade e a determinação que o tornaram querido nos quadrinhos é transposta de forma cuidadosa, a fim de garantir imediata afeição do espectador. Existe uma cena particular, quando o garoto se dá conta de que precisa seguir o legado deixado pelo Homem-Aranha, que é belíssima.
Por isso não se surpreenda ao se dar conta de que os outros Homens-Aranha, vindos das mais diversas dimensões, não tem grande destaque no filme, servindo apenas para mover a trama e, é claro, desempenhando papel de escada para o desenvolvimento de Miles. Mas isso não é um problema. Na verdade está muito longe disso. O grande foco da história ser Miles Morales e seu aprendizado pessoal de poder e responsabilidade é o que dá coração ao filme e o sustenta.
Mesmo o interessantíssimo Peter Parker de meia idade não tem todo o destaque que aparentava ter nos trailers, apesar de ser um dos conceitos mais interessantes de todo o filme. Talvez o maior atrativo do Homem-Aranha nos quadrinhos, desde sua criação, tenha sido a sensação dos leitores de estarem crescendo com o personagem, que passou pelo ensino médio, faculdade e casamento, enfrentando todas as adversidades de cada período enquanto lidava com o vilão da semana. Claro que chegou um ponto onde a Marvel precisou interromper o envelhecimento de Peter da forma mais bizarra possível (Um Dia a Mais, estou falando de você), o que torna ainda mais corajoso e satisfatório o que foi feito com o personagem aqui.
O Peter de meia idade é extremamente relacionável, e todos aqueles com um pouco mais de idade vão se identificar com um ou outro ponto dele. Sejam as perdas pessoais, as frustrações, ou simplesmente a barriguinha saliente que vai ficando cada vez mais difícil de se livrar conforme a idade vai pesando. Essa interpretação do Homem-Aranha, nunca antes feita com tanta elegância, só comprova o quanto ele é o super-herói mais relacionável de todos. Independente da idade.
Ainda assim, mesmo com pouco tempo de tela, Porco-Aranha, Aranha-Gwen,Homem-Aranha Noir e Peni Parker possuem todos bons momentos e são bem utilizados no roteiro, dentro da narrativa proposta.
As inspirações mais claras do filme são a saga Aranhaverso, de Dan Slott, eHomens-Aranha, de Brian Michael Bendis. E apesar da primeira dar nome ao filme, a segunda sem dúvidas é a mais influente. Principalmente por se passar justamente no período onde Miles havia acabado de ser criado nos quadrinhos, sem saber exatamente como ser um Homem-Aranha, enquanto o mundo ainda sentia a perda de Peter Parker.
Um outro ponto digno de nota em Homem-Aranha no Aranhaverso é o drama presente na história, que também nunca foi evidenciado nos trailers – provavelmente porque não seria comercialmente interessante vender uma animação assim. O filme transita tranquilamente de cenas bem humoradas para dramas densos e reflexões profundas, sem em nenhum momento se perder no tom. É uma direção segura, que mantém a história coesa e sabe exatamente como lidar com cada situação.
Agora, um potencial enorme na franquia Homem-Aranha está aberto para a Sony, que se vê muito mais confortável em trabalhar com o personagem do que estavam há alguns anos, quando negociaram seus direitos com a Marvel Studios. Homem-Aranha no Aranhaverso já possui uma sequência confirmada, e discute-se nos bastidores da Sony o desenvolvimento de potenciais derivados para a TV usando os vários Homens-Aranha do filme. Se isso pode saturar a ideia? Não sei. Mas se tiverem o mínimo da qualidade desse filme… que venha mais Aranhaverso!